No final de 1992, o horário nobre da TV estava movimentado. Guilherme de Pádua havia assassinado a filha de Glória Perez a facadas, mexendo na novela De Corpo e Alma – aquela que Tarcísio Meira se apaixonava por Cristiana Oliveira por causa do coração transplantado, que era da Bruna Lombardi, mas que os três espectadores só lembram por causa do gótico Eri Reginaldo Johnson. Antes, no Jornal Nacional, o noticiário político tratava do então presidente da República, Fernando Collor de Mello, que na mesma época renunciou para evitar o processo de impeachment.
Eu era um moleque de quinze anos, passando férias em Pelotas. Antes de sintonizar a televisão à noite, passeava pela Marechal Floriano, perto da Praça Coronel Pedro Osório, flanando na Livraria do Globo. Ficava ao lado das Lojas Brasileiras e daquele prédio antigo onde ficava a farmácia Khautz.
Ali comprei, por alguns milhares de cruzeiros, a 12ª edição de “Humor nos Tempos do Collor”, uma coletânea de humor político da L&PM daquilo que, nos anos 1990, acreditava-se ser o pior governo da história do país. Mal sabíamos o que viria em 2018.
Mas enfim. Assinam o livro Jô Soares, que mantinha uma coluna semanal na Revista Veja; Millôr Fernandes, com suas participações no Jornal do Brasil; e um cronista, que também ensaiava tirinhas com cobras, publicado semanalmente no Zero Hora e no Estadão.
A crônica da página 50, “O quase”, é minha primeira lembrança de um texto do Luis Fernando Veríssimo. Aquela que me fez continuar procurando por ele desde sempre.
Sentado sozinho no seu gabinete, Collor olha para o botão vermelho.
Retrocede no tempo, em pensamento. Lembra a primeira vez em que entrou no Palácio do Planalto. Já estava eleito, mas ainda não tomara posse. la ter uma reunião secreta com Sarney.
Collor lembra-se de todos os detalhes da visita. De como chegou ao Palácio do Planalto discretamente, vestindo um macacão cor de abóbora, de ultraleve, com uma escolta de seguranças em asas-deltas, e entrou pela porta dos fundos abanando para as câmaras. De como foi levado diretamente ao gabinete do Sarney.
O presidente estava sentado à cabeceira de sua mesa de trabalho. Disse para Collor dispensar seus acompanhantes. Precisavam ter uma conversa a sós.
– Senta aí – disse Sarney, indicando uma cadeira.
Coltor sentou. Sua cadeira, lentamente, começou a baixar
– O que é isso?! – disse Collor, quando notou que seu queixo quase encostava na mesa.
– Eu controlo a altura da cadeira com um botão aqui em baixo. É para quando recebo a visita do general Pires Gonçalves ou do Roberto Marinho. Para eles não se sentirem muito superiores.
– E dá certo?
– Não. O Gonçalves é tão alto que não faz efeito. E o Roberto Marinho traz dois catálogos telefônicos. E o Antônio Carlos Magalhães traz a sua própria cadeira. Mas é sempre bom saber que existe o recurso.
– Acho que não terei esse problema com o meu ministro do Exército…
– Sei. Você escolheu o Tinoco. O nome já é uma cadeira baixa.
Sarney apontou para uma fileira de botões em cima da mesa e foi descrevendo para o que servia cada um.
– Este aqui é para desintegrar o Maílson. Nunca usei, claro, mas estive perto de apertá-lo muitas vezes. Este aqui é para avisar a Marly que tive um dia terrível e que é para ela preparar minha tintura de bigode. Ah, e este aqui vai lhe dar muita alegria. É para chamar o Roberto Cardoso Alves.
– Mas o Roberto Cardoso Alves não será meu ministro.
– Exatamente. Você pode apertar o botão à vontade, sabendo que ele não aparecerá. Que inveja!
Subitamente, Sarney ficou sério. Apontou para um botão vermelho, maior que os outros.
– Preste atenção – disse. – Este botão é importantíssimo. Ele aciona um dispositivo que nós chamamos de Último Cartucho ou Juízo Final ou ainda PQP!
– Do que se trata?
– Quando chegar o momento, quando tudo, mas tudo, der errado, quando o Brasil não tiver mais salvação, quando a crise chegar a um ponto absolutamente sem solução e quase mais nada no país estiver funcionando, basta apertar este botão e esta sala toda será expelida pelo teto do palácio, transformando-se num helicóptero que transportará o presidente para um lugar seguro. Mas atenção: só aperte este botão no momento certo.
Agora Collor olha para o botão vermelho e se pergunta se chegou o momento.
Decide que sim. Tudo deu errado. A crise não tem solução.
Ele aperta o botão vermelho.
Nada acontece.
Collor lembra a frase de Sarney sobre o momento certo: “Quando quase nada mais no país estiver funcionando …”.
Descobre que deixou passar o momento certo. No governo Sarney faltava o quase. Agora não falta mais nada.
Nem o botão vermelho está funcionando.
Lembrei desse texto ao ouvir que, aos 88 anos, LFV está internado no hospital Moinhos de Vento com um grave quadro de pneumonia. Nas últimas semanas, lida com as consequências do Parkinson, seguido por um AVC.
Qual a sua primeira lembrança de Luis Fernando Veríssimo? E qual a mais legal?